HELENICE MARIA REIS ROCHA
A Lírica Feminina Contemporânea
Helenice Maria Reis Rocha - Mestre em Letras/UFMG
Pensando nas manifestações de
poesia veiculadas por meios de comunicação de massas, tais como: sites de
poesia, movimentos organizados, discussões midiáticas, tenho me proposto a
pensar em que sentido a dicção feminina circulando nestes meios se aproxima ou
acrescenta novas linguagens e formas de expressão à lírica grega. Se pensarmos
nos trabalhos de Benjamin a respeito da lírica simbolista observaremos que esta
lírica acrescenta à uma dicção, uma crítica contundente ao mundo capitalista.
Tenho
pensado, como Salete Almeida Cara, que a lírica feminina contemporânea que
circula entre a internet e a mídia impressa tem incorporado às suas formas de
expressão vivências que rediscutem o lugar de enunciação do que define o
feminino ou o masculino na poesia. Saindo das metáforas da morte de Henriqueta
Lisboa, lindas metáforas de mocinha cristã, às jovenzinhas martirizadas do
panteon de santinhas de Cecília Meireles, desaguamos numa dicção lírica que nos
remete ao prazer,à psicanálise,à luta política,com a mesma delicadeza imagética
de uma dicção lírica.
Pretendo analisar aqui algumas poetisas do movimento
Poetasdelmundo que, com dicção própria, expressam com a maior delicadeza
problemas e sensibilidades possivelmente impossíveis para mulheres poetisas ha cinquenta anos atrás.
Começo pela jovem Isabela que nos diz: “Titia!!! Titia!!!
Eu sou a mãe do vento!!! O vento não morre titia!! E ele é feliz!!!...”. Uma jovenzinha de, então, três anos que, há uns cinquenta anos atrás estaria
cantando canções religiosas em algum colégio de freiras e, aos três aninhos, hoje, já
estava tentando entender a vida, a morte, o tempo, o gozo... Segundo Mouralis:
“A literatura é compromisso. Os escritores, como tais, têm uma função social
definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a
sua principal utilidade”... (Mouralis, 1982, pág: 36).
Assim, poetisas que com
uma dicção lírica, nos traduzem como linguagem, formas de discussão que
rediscutem as questões de gênero, tanto no que diz respeito à linguagem quanto
no que diz respeito ao seu lugar de enunciação. Cumprem a responsabilidade
apontada por Mouralis.
Começo por Maria Angélica em: BRAÇOS ABERTOS Olha moço, que
bela cidade / se descortina / à frente de nossos passos / Parece menina / Depois da
chuva / livre do pó / a cidade remoça / Veja as pessoas / caminhando tranquilas / Não é
dia de trabalho / Alguns trabalham / ambulando suas mercadorias / próximo à rodoviária Não há
pressa , o dia é longo / quase deserta / a cidade recebe o visitante / e o habitante / que regressa à capital / Belo Horizonte / recebe de braços abertos (Bernardes,
pág:25, 2012 ) O que se evidencia neste poema é que, imanente à serenidade
solene que descreve a cidade e o visitante, existe uma anti elegia ao mundo da
produção, tão precioso às lógicas de um discurso hegemônico que inclusive, no
Futurismo de Marinetti, procura dar uma face de modernidade ao já bem conhecido
projeto de desenvolvimentismo capitalista. Esta evidente recusa a um dia
produtivo recusa, mesmo que através da magia da arte, a lógica de um discurso
hegemônico e suas hierarquias. A beleza da cidade se torna mais importante do
que a lógica da produção e suas hierarquias e seus negócios, o que garante à
esta dicção uma doce modernidade uma vez que não reproduz a tirania do discurso
oficial:
Bandeira Branca Um olho uma gota o suspiro Sorriso lacrimejante Um
pedido Um apelo a dúvida Mãos desejam Um ai Um ui a dor Dentes rangem Um alívio
Um amor a paz Pés almejam (Marques, pág: 29, 2012) Se a utopia nos coloca na
plena realização do desejo e diz: o prazer aos bem resolvidos pela psicanálise,
esta dicção instaura a dúvida. Cumpre saber quem são os bem resolvidos nesta
correlação de forças hodierna. O amor possível em: “Um ai, Um ui, a dor Dentes
rangem, Um alívio, Um amor, a paz...” (Marques, pág: 29, 2012). Um amor
possível diz respeito ao momento, à efemeridade, longe dos acordos de
conveniência à socialização do amor, que as perdas das situações paradigmáticas
impõem. Os marcados por doze horas de trabalho talvez, apesar das leis
trabalhistas, perdem a definição do desejo segundo Benjamim: “... Os gregos só
conheciam dois processos para a reprodução de obras de arte: o molde e a
cunhagem. As moedas e terracotas eram as únicas obras de arte por eles
fabricadas em massa. Todas as demais eram únicas e tecnicamente
irreprodutíveis. Por isto, precisavam ser únicas e construídas para a
eternidade. Os gregos foram obrigados, pelo estágio de sua técnica,a produzir
valores eternos.” (Benjamim, pág:175, 1996).
Se pensarmos que a linguagem
poética, em si, representa algumas incompatibilidades com esta
reprodutibilidade, podemos associá-la permanentemente à lírica grega e a uma
certa intemporal idade.
Retomemos Delasnieve Daspet em: Mão Humana Uma mão
humana. Uma mão com cinco dedos / Foi assim que o Criador fez.../ Cada dedo
independente, unidos e separados... / Se juntássemos os dedos / - a força aumentaria / Teríamos mais poder, mais união. / Deixemos que a terra se torne / esta mão forte e
unida / assim venceremos as lutas diárias / a miséria de milhões de africanos / de
esquálida figura e doce olhar! / Mortes pelo Oriente Médio... Chacina / - não é
necessário iir tão longe / Mandamos soldados para o Haiti, / Mas o Haiti é aqui,
como diz a canção... / (...) (Daspet, pág: 68, 2008) Da simples descrição de uma
singela mão e seus dedos à associação com a leitura ética, civilizatória, da
realidade do mundo: a linguagem, coloquial, de massas, a leitura de mundo,
complexa, perpassando a condição humana para além da territorialidade aldeã no
seu dilema básico: a vida. A coloquialidade da linguagem tendo como imanência
uma leitura civilizatória de grande alcance não reprodutível pelos interesses
envolvidos na lógica do discurso oficial, hegemônico.
A lírica de Camões,
partindo da redondilha, da linguagem reprodutível e de massa, disse da
complexidade do amor explicitando, através do paradoxo, quase do absurdo, o
lugar de enunciação de onde emerge a sua aparente simplicidade.
Segundo Bahbha:
“... Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite
ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do outro que reforça
sua própria equação conhecimento-poder!” (Bahbha, pág: 45, 1998). O discurso
feminino, marcado pela maternidade, paramentado para desconstruir relações
de poder.
Então, em Clevane, temos: A última cavalgada / os homens mortos estão:
pura nata/ calda vermelha óleo e sabão, / coalhando os campos de batalha... / sem
preces e sem mortalha / nem quem lhes segure a mão ... (Pessoa, pág:35,2005)
Enquanto loguz, invenção de homens personificada por Heráclito pressupõe a
unidade da confrontação permanente tornando o grotesco tão natural quanto o
sublime, a caótica linguagem feminina nos reconduz ao sentido maior de uma
singela mão segurando outra mão.
Todas estas poetisas, descentradas da máscula
linguagem de loguz, da razão iluminadora, de todas as certezas, de todo centro.
(Brandão, pág. 34, 1998) trazem a dúvida, a fragmentação que batiza a
modernidade com a presença do outro, da alteridade. A lógica da identidade que
une através do verbo ser os opostos, o sublime e o grotesco, o perfume e o lodo
é perpassada aqui pela dúvida em Brenda Marques, por lindas e insólitas
metáforas de homem em Clevane, pela dessacralização das guerras em Delasnieve,
pela suave anti elegia do modo de produção capitalista em Maria Angélica.
Segundo
Heráclito: Se não ouvirem simplesmente a mim mas se tiverem ascultado
(obedecendo-lhe, na obediência) o logoz, então é um saber (que consiste em) dizer
igual o que diz o logoz. Tudo é um (Heráclito In: HEIDEGGER, pág:256) A metáfora
conceitual, como por exemplo: “... aquele rio era como um cão sem plumas...”
(João Cabral de Melo Neto) une verbo ser a um predicativo exatamente como na
proposta pré socrática de Heráclito, que, sintagmática, une os opostos pelo
verbo ser o que é bem confortável para a lógica dos discursos hegemônicos que
sobrevivem da boa convivência dos contrários. Une as aporias garantindo a
perpetuação de determinado tipo de poder.
Em Maria Angélica Bernardes, tanto quanto
em Clevane e mesmo em Brenda e Delasnieve observamos uma recorrência permanente
a verbos de ação em lugar do verbo ser. Neste sentido é recorrente uma gradação
de ruptura com a estrutura de linguagem ocidental, aristotélica. A linguagem
poética sai do campo conceitual para o campo descritivo da ação, Poetisas
saindo da contemplação da realidade, própria daqueles a quem foi negada a
práxis e deságuam na junção práxis, ativismo e linguagem, uma vez que são
ativistas de Poetasdelmundo. Saem, também através de uma nova estrutura de
linguagem, do confortável voyerismo de observar e conceituar o caldo de cultura
em que estamos imersos e descrevem ou se expressam através da linguagem da
práxis, representada mais por verbos de movimento do que pelo verbo de
identidade, conceituador.
Partindo deste escopo de reflexões venho desaguar em
Neusa Ladeira. Vejamos: Poética das Horas / Trinando acordo / Tico-tico rei /Suave
complementa / Abrindo surdos / As araras do vizinho / Estridentes nos golpeiam / Sonho
breve em fuga luz Como não ver se olhos choram / Coração aperta ruge emoção / Ansiosa vai à busca / No início resoluta no traçado cambiante / Em final hilariante / Mesmo dito ainda pergunta / Dos lençóis amarfanhados / Onde está o estonteante / Aquele sonho recorrente / Ora chega na lembrança / Nada mesmo de saudade só terror
asfixiante... (Ladeira, 2009) Assim como nos poemas anteriores, toda a
estrutura de linguagem é alinhavada por verbos de ação. A lírica contemplativa
de uma Cecília Meireles em: “... leve é o pássaro e a sua sombra voante...”,
cede lugar a um trinante acordo de pássaros, com direito à criação do verbo
trinar usado aqui como verbo e, ao mesmo tempo, adjetivo. Este movimento de uma
linguagem contemplativa, conceitual, a uma linguagem que nos aproxima da ação,
práxis, nos remete à diferença de possibilidades circunscritas à condição
feminina do começo do século vinte, onde só era possível observar a práxis feminina
como tabu migrando para a práxis mesma, refletida esta transformação em mudança
na estrutura da linguagem sem , contudo, perder o sentido suspenso de toda a
linguagem poética, que no mais das vezes nos tira das noções de tempo e espaço.
Os gregos não consideravam poesia, literatura rasura esta que nos autoriza ao
devaneio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- Brasil, Joaquim Fontes. Variações sobre
a lírica de Safo. São Paulo:Ed.Estação da Liberdade,1992.
- Brandão, Junito de
Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes,
1993.
- Branco, Lucia Castello, Brandão, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio
de Janeiro: Milman, 1989.
- Derrida, Jaques. Gramatologia. São Paulo:
Perspectiva, 1973.
- Heidegger, Martim. Heráclito. Rio de Janeiro: Dumará,
1998.
- Braga, Anderson. Sonata Poética. Belo Horizonte, Anome Livros, 2005.
-
Bhabha, Homi K. O Local da Cultura. Editora UFMG, 1998.
- Benjamin, Walter.
Magia e Técnica Arte e Política. Editora brasiliense, 1985.
- Poetasdelmundo em
Poesias, Volume I, I Congresso Mundial de Poetasdelmundo, Natal, Um Mar de
Poesia e Paz.
- Salgado, Rogério, Araújo, Virgilene. Poetas Em Cena. Belô
Poético Produções Artísticas e Literárias. Belo Horizonte, 2012.
- Pena, Brenda
Marques. Instituto da Imersão Latina. Nós da Poesia. All Print Editora, 2009.